Thursday, December 16, 2004

Saúde - Reflexões de 2004

O Público e o Privado

Sidney B. Diniz


O mercado tem sofrido grandes reviravoltas nos últimos anos, em função das rápidas transformações a que tem sido submetido. O ciclo que se auto-alimenta formado pela tecnologia, pela informação “on line” e pela participação ativa das pessoas na busca dos seus sonhos, aumentou exponencialmente a velocidade das transformações na vida de todos, das empresas, dos conglomerados, das nações, do mundo. É um cenário belo e perigoso, de ganhos e perdas, de atualização ou de falência, principalmente de saber ver as oportunidades e saber aproveitá-las. Isto é fundamental, sob pena de gradativamente caminhar-se em direção à periferia daquele ciclo, até ser expulso pela sua própria obsolescência.
No meio deste furacão revolucionário comportamental estão pessoas, informações , tecnologia, sistemas, padrões, produtos, serviços e grana. Se você não se deu conta de onde está ou se demora a perceber essas transformações, pode ter perdido o bonde dessa nova era. Não mais se admite amadorismos ou tradicionalismos imobilizantes. A visão, a percepção e a intuição, todos lastreados por um profundo conhecimento continuo e atual de sua realidade inserida nesse mercado altamente competitivo, faz a diferença que criará o futuro almejado. A atual revolução é a revolução de conceitos e de responsabilidades.
Transportemos-nos para o nosso negócio, a Saúde. É fato que muitos Gestores e Empresários, tanto da área pública como da área privada, vêm enfrentando grandes dificuldades com os crescentes custos da medicina, não restando outro caminho, senão pela racionalização, não só de produtos e serviços, como também pela racionalização de sistemas e também , por que não, pela racionalização ideológica. Essa situação atinge todo o mundo não importando o credo político ou a natureza de seu sistema de saúde.
Hoje no berço do capitalismo, apesar de toda revolução conceitual, processual e hierárquica que levou a criação do “Managed Care”, vemos redes de hospitais querendo sair correndo do mercado, vendendo seus ativos por preços abaixo do que representam. E vejam que todo sistema é calcado em uma base racionalizante, mas que ainda apresenta diversos senões e distorções, necessitando ser bem melhorada. Os radicalismos tem de ser melhor avaliados e reestruturados, tanto para cima quanto para baixo. Isto é, por um lado, os cuidados gerenciados são ancorados no conceito de uma única entrada para determinado número de pessoas cadastradas, e que tem o “gatekeeper” ou o “primary physician” como peça fundamental na economia do sistema. Sendo que lhe é exigido adotar “protocolos rígidos” que o engessam, exames superfiltrados e acesso ao especialista restrito, cabendo a ele um atendimento tipo generalista, mas realizando também, procedimentos ginecológicos, dermatológicos, otorrinolaringológico, etc. Com isso se consegue um certo equilíbrio financeiro, uma racionalização de exames, consultas e procedimentos, mas as restrições impostas trazem grandes preocupações às sociedades representativas. Por outro lado, se investe muito pouco em diminuir o número de processos legais contra os profissionais de saúde, principalmente os médicos. Esses, inclusive os mais capacitados, estão evitando se colocarem em uma linha mais complexa e intervencionista que os exponha as facilidades desses processos. Com isso, tanto os mais qualificados que se mantêm ainda num atendimento de vanguarda como aqueles sem tanta capacitação, tendo recentemente entrado no mercado ou não, criam o seu próprio e defensivo protocolo de diagnóstico e tratamento, fazendo com que os custos se mantenham extremamente elevados. Sabendo-se que essa racionalização também atinge o planejamento de recursos humanos, onde os coeficientes força de trabalho por leitos e consultórios são mantidos altamente apertados, fazendo com que as equipes sejam extremamente enxutas, horizontais, multifuncionais e sinérgicas, o que por um lado é até desejado e interessante, pois existe um maior aproveitamento e valorização financeira do funcionário, mas por outro lado sua carga de múltiplas atividades leva em ocasiões a dificuldades assistenciais. Mesmo assim os empresários continuam buscando um aperto maior e com novas fórmulas que possam fazer frente a essa crescente elevação de custos, pois a situação se mantém bastante complicada. Só uma mesma e importante rede hospitalar vendeu a pouco, por preços inferiores ao seu valor de mercado, oito de seus hospitais na Califórnia. Outro dado que aponta para crise no sistema é de que importantes hospitais de emergência, em grandes cidades como Los Angeles, estão fechando suas portas por não mais agüentarem financiar o atendimento daqueles que não podem pagar e que não têm direito, por diversas razões, a subvenções do governo. Estes hospitais também apresentam ou apresentavam problemas de superlotação, pois a Emergência, para muitos desses usuários, é o único acesso possível ao sistema de saúde. Eu estou me referindo a um país de primeiro mundo. Vale a pena conferir o artigo de Doutor Isadore Rosenfeld, “We Must Fix Healthcare” sobre esse assunto.
No outro lado da moeda, o benchmarking de sistema público de saúde, o Canadá, também apresenta sinais de necessidade de reavaliação e aperfeiçoamento. As filas de pacientes aguardando tratamento aumentam assustadoramente, tanto em número de pacientes quanto em tempo de espera. Cirurgias, até aquelas com certo grau de urgência, são postergadas por vários meses, fazendo com que haja, além das complicações esperadas, uma constante migração para os Estados Unidos, com exacerbação das situações já assinaladas e uma continua sobrecarga nas emergências de seus hospitais, aumentando mais ainda seus custos. Mas, também o sistema público do Canadá recebe ambulatorialmente pacientes oriundos dos Estados Unidos, em busca tanto de um atendimento médico mais complexo e mais caro, como até mesmo o mais simples. São pessoas que não têm seguro-saúde ou condições de bancarem seu tratamento, e que também buscam os medicamentos fornecidos gratuitamente pelo sistema canadense, visto que os preços em seu país de origem se elevam a níveis estratosféricos.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde, criado a partir da Constituição Federal de 1988, institui a saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado, e subscreve um sistema unificado, descentralizado e com direção única em cada esfera de governo, com acesso universal, atenção integral e participação social. O financiamento da atenção à saúde tem condicionado a construção de modelos assistenciais e de gestão consoantes com os princípios e diretrizes do SUS e da destinação dos recursos públicos sob controle social. Com a legislação constitucional e infraconstitucional, ampliaram-se as bases de financiamento, com co-participação de recursos das esferas federal, estaduais e municipais. Não obstante o crescimento da alocação orçamentária de estados e municípios, e o repasse automático e regular de recursos Fundo a Fundo, a regulamentação dos critérios estabelecidos em Lei pelas Normas Operacionais Básicas do Ministério da Saúde não tem logrado viabilizar a conformação de novas formas de organização da atenção e de sua gestão. Os critérios utilizados não têm logrado incrementar a autonomia dos municípios na alocação dos recursos, de forma a contemplar as diversidades das realidades populacionais, sócio-econômicas e sanitárias. Como também não tem garantido condições políticas, gerenciais e técnicas que permitam maior inclusão, democratização, qualidade e resolutividade da atenção.
No Rio de Janeiro a prefeitura tem mostrado já há alguns anos grandes dificuldades em manter um financiamento adequado de seus hospitais, fato agravado pela municipalização dos grandes hospitais federais,fazendo com que a cidade possua a maior rede pública do país, e , proporcionalmente o maior orçamento, mas ainda assim bem aquém das necessidades de sua extensa e complexa rede. Os noticiários mostram atrasos importantes de pagamentos por serviços continuados imprescindíveis. Falta de materiais e medicamentos. Obras com dificuldades para serem concluídas. Cirurgias de maior complexidade sendo suspensas ou restritas a um número limitado. Hoje se aponta a autonomia de gestão como salvaguardas de todas essas dificuldades o que a nosso ver é um passo altamente importante, mas obviamente insuficiente. Achamos que uma melhor organização da porta de entrada e saída com protocolos aceitos pelas sociedades médicas, mas com a participação da rede privada, é imprescindível. Também são fundamentais uma reestruturação e racionalização das unidades e da assistência. Nos hospitais que estão evoluindo para a autonomia, têm de haver uma forma legal que permita um financiamento compartilhado com o setor privado, o que a nosso ver cobriria, junto com outras medidas, o déficit existente. Enquanto não houver um entendimento entre os setores privado e publico visando uma hierarquização assistencial e um financiamento compartilhado, estaremos sempre vendo este mesmo filme por diversas vezes mais. É lamentável e esquizofrênico achar que seja ideologicamente incompatível a convivência desses dois setores enquanto o povo carece de uma atenção de saúde adequada ou um acesso ao sistema.
Em resumo não importa o país, o sistema, a natureza ou a ideologia, os custos com a saúde estão cada vez mais proibitivos e não proporcionais a atenção recebida por grande parte de sua população. Enquanto não se entender que saúde, como dizia nosso querido Gazolla não é uma função de governo, política, e sim uma função de Estado, do povo, e tratar a todos sob todos os ângulos, criando um ambiente sinérgico entre o publico e o privado, a tendência é de um futuro com dificuldades crescentes.
Mas, como diz Peter Drucker, “A melhor forma de prever o futuro é criá-lo”. Se associarmos o compartilhamento do financiamento com padronizações, protocolos e profissionalização das gerências central , intermediária e local. Uma reforma administrativa com autonomia de gestão, metas contratualizadas, horizontalização estrutural e organizacional, com equipes multisetoriais , multiprofissionais e sinérgicas. Reorganização da atenção primária, secundária, terciária e quaternária, com responsabilidade integrada entre os setores público e privado. Investimento prioritário e fundamental nos ativos intelectuais , na “inteligência emocional” e nos talentos, com estímulo a capacitação, com premiação ao desempenho além de um plano de cargos e salários que agregue valor e que sirva de incentivo a entrada e a permanência do bom profissional em seus quadros. Sistemas Gerenciais de saúde que permitam uma regulação adequada da assistência e que garanta e organize o acesso da população. Faz-se também imperativo sair da visão ortodoxa assistencial e buscar novas alternativas, tanto preventivas como terapêuticas. Se junto a essas idéias outras puderem ser somadas tendo-se sempre em mente o direito constitucional do povo à saúde, estaremos certamente construindo e prevendo um outro futuro, bem mais saudável para a nossa cidade.

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